Malformações Arteriovenosas (MAVs)

O que são as malformações arteriovenosas (MAVs)?

Definição

As malformações arteriovenosas (MAVs), são shunts diretos entre artérias e veias cerebrais displásicas em que um nidus de vasos anormais, de paredes finas e frágeis, está interposto e sem que haja parênquima dentro dele, porém sim ao redor. Atualmente se considera que têm uma origem congênita, porém podendo mudar seu comportamento hemodinâmico através da vida do paciente. 

Podem localizar-se em qualquer parte do sistema nervoso central, sendo mais comuns nos hemisférios cerebrais e, logo em ordem decrescente, cerebelo, núcleos cerebrais, tronco encefálico e medula espinal. 

A morfologia das MAVs é bastante variável, medindo desde uns poucos milímetros até acima dos seis centímetros, quando são consideras grandes. O nidus pode ser cônico (a mais típica) ou globular, e ter uma arquitetura de vasos compacta ou difusa, devendo estas últimas ser diferenciadas de uma outra doença, a angiopatia proliferativa, que têm um comportamento mais agressivo e evolutivo. Uma característica importante das MAVs é que respeitam a anatomia da irrigação arterial onde estiverem localizadas, razão pela qual o conhecimento anatômico minucioso do neurocirurgião vascular é fundamental.   

Epidemiologia

As MAVs cerebrais são raras, encontradas em cerca de 0,1% da população, e tendo um décimo da incidência dos aneurismas cerebrais. Cerca de 15% das MAVs permanecem assintomáticas durante toda a vida do paciente. Dentro do encéfalo, cerca do 90% das MAVs se encontram na região supratentorial, e os 10% restantes ocorrem na fossa posterior. As MAVs geralmente ocorrem como lesões únicas e em 5% dos pacientes existem MAVs múltiplas. Não têm preferência de gênero.

Apresentação Clínica

A apresentação clínica depende da idade do paciente, do tamanho, localização e características vasculares da MAV. Esses pacientes comumente apresentam cefaleia, déficit neurológico ou convulsões, podendo ou não se dever a uma hemorragia, que é a manifestação mais comum.    

As MAVs não rotas têm um risco anual global de hemorragia de 2% a 4%, sendo esse risco maior em as MAVs rotas, especialmente no primeiro ano após a ruptura inicial. As crianças apresentam mais frequentemente hemorragia que os adultos, e esta pode ser parenquimatosa, intraventricular ou subaracnóidea. As MAVs com drenagem venosa profunda, localização cerebral profunda e com um nidus de pequeno tamanho têm um risco maior de ruptura.

As MAVs que apresentam maior risco de convulsões são aquelas corticais, superficiais, nidus grandes e com drenagem venosa superficial. Em pacientes com MAVs detectadas incidentalmente, há um risco aproximado de 8% de convulsão pela primeira vez em 5 anos de diagnóstico. No entanto, esse risco é de aproximadamente 20% para aqueles que apresentaram hemorragia ou déficit focal. As convulsões são focais, simples ou parciais complexas com generalização secundária, e podem ocorrer devido à hemorragia intracraniana evidente, pela deposição de hemossiderina, ou secundárias à hipertensão venosa. Ao redor do nidus também existe um estado de hipoperfusão que gera uma isquemia crônica, resultando em perda de células neuronais, gliose e alterações da fisiologia da glia, níveis alterados de neurotransmissores, geração de radicais livres, com o resultante de células aberrantes. A localização da MAV influencia o tipo de crise e a semiologia que esta terá. 

O déficit neurológico, também chamado foco neurológico, pode ser consequência da ruptura da MAV ou, mais frequentemente, pelo “roubo de fluxo”, próprio das mudanças hemodinâmicas que produz a malformação no local em que se encontra, diminuindo a irrigação às regiões onde normalmente o sangue deveria ir. Déficit no aprendizado ou alterações no comportamento, além de sintomas mais clássicos como paresias ou parestesias, fazem parte dos sintomas mais comuns, mas só podem ser achados se são devidamente procurados. 

Frequentemente as cefaleias são incidentais, sem alguma característica específica e com um exame neurológico normal. Até um quinto dos pacientes apresentam cefaleia como principal sintoma, sem evidência de ruptura da MAV, que comumente pode se caracterizar como uma enxaqueca. 

Diagnóstico

Os estudos de imagens são essenciais para estabelecer o diagnóstico correto, assim como a caracterização neuroanatômica da lesão para planejar o tratamento mais adequado.

A tomografia (TC) de crânio é comumente o primeiro exame de imagem a ser usado para descartar uma hemorragia. Um hematoma lobar sem edema e calcificações significativos é um achado de alta suspeita de MAV. As calcificações parenquimatosas são encontradas em 20% dos casos, podendo estar relacionadas a trombose intravascular ou a evolução de um hematoma antigo. A compressão do nidus pelo hematoma impede o diagnóstico por meio da TC em pacientes com hemorragia intracerebral aguda; nesses pacientes, outros exames de imagem devem ser realizados.

A ressonância magnética (RM) é uma ferramenta altamente sensível para definir a localização do nidus da MAV, suas relações neuroanatômicas com as estruturas adjacentes, assim como a veia de drenagem associada, se valendo das múltiplas sequências disponíveis nesse exame (T1, T2, FLAIR, espectroscopia, etc.). Também tem uma sensibilidade única em demonstrar sangramentos antigos e inclusive pequenas mudanças no parênquima ao redor dessas lesões. Enquanto a angiografia por RM (angioRM), esta pode caracterizar a drenagem venosa e outras características vasculares com uma alta precisão, sem a necessidade da injeção de contraste intravenoso.

A angiografia digital, a diferença dos antes descritos, é um exame dinâmico, é o padrão ouro para o diagnóstico, planejamento e acompanhamento após o tratamento das MAVs. As informações anatômicas e fisiológicas do nidus, sua relação com os vasos circundantes, discriminando os vasos que entram ao nidus e aqueles que só estão de passagem e sem relação direta com a MAV, e a localização da porção drenante são prontamente obtidas com esta angiografia cerebral. Também ajudará na demonstração de aneurismas associados, pré ou intra-nidais, que são uma lesão com maior risco de hemorragia subsequente. Os tempos de trânsito do contraste durante a realização do estudo fornecem informações úteis adicionais sobre o comportamento hemodinâmico da MAV. 

Tratamento

O tratamento não só deve ser individualizado, senão que também deve ser multidisciplinar. A decisão deve ser tomada em base ao tamanho do nidus, o tipo de drenagem venosa (superficial ou profundo), e a localização (se for em uma região eloquente ou não); com esses parâmetros a MAV é classificada (Classificação de Spetzler-Martin), e calculado o risco de ser tratada de maneira cirúrgica. 

A ressecção microcirúrgica é o tratamento mais eficaz para as MAVs. O neurocirurgião vascular deve seguir passos e princípios cirúrgicos da técnica especial para esse tipo de lesões, baseado na microdissecção, na coagulação e corte de cada um dos vasos aferentes do nidus, até desconectá-lo totalmente da circulação, preservando até o final da dissecção a veia de drenagem. O uso de instrumental especialmente feito para este tipo de cirurgias, além do uso de microscópicos com a possibilidade de realizar angiografias em tempo real, com verde com indocianina, um avanço relativamente novo no campo da cirurgia cerebrovascular, aumentando a segurança do procedimento. A monitorização neurofisiológica intra-operatória permite também controlar em tempo real as funções neurológicas durante a manipulação da malformação. A ressecção deve ser sempre completa, garantindo a plena cura da doença e retornando o fluxo cerebral à normalidade. 

As MAVs localizadas em áreas eloquentes, como por exemplo a área da fala, o córtex sensitivo, o córtex motor, ou o córtex visual, supõem um desafio maior para o neurocirurgião, motivo pelo qual diferentes estratégias e ferramentas foram desenvolvidas nos últimos anos. Os portadores de esse tipo de MAVs podem ser candidatos a uma microcirurgia, estando o paciente acordado e alerta (“awake craniotomy”) por meio de uma anestesia e analgesia especiais, para avaliar, ajudando-se também de estimulação cortical direita, de maneira direita e em tempo real por meio de testes neurológicos e neuropsicológicos, as regiões adjacentes à MAV e assim conseguir uma ressecção segura, com um pós-operatório com uma recuperação mais rápida.   

Em MAVs que tenham um alto fluxo ou em casos em que este provenha de localizações profundas, o tratamento endosvascular, que consiste em a canalização e obliteração seletiva (embolização) de alguns dos vasos que irrigam o nidus da MAV, é realizado antes e de maneira sequencial à cirurgia, conseguindo uma diminuição do volume de sangue que chega até a malformação, e resultando em uma redução no tempo da ressecção cirúrgica. A quantidade de sessões de embolização necessárias, uma única ou várias, será sempre discutida com a equipe multidisciplinar.  

A correta seleção da estratégia pré e pós-terapêutica, baseada em as características anatômicas, (como o tamanho, localização e drenagem) e hemodinâmicas, levam a que o tratamento microcirúgico possa ser totalmente curativo, com um curto período de recuperação e um retorno às atividades normais no menor tempo possível.